Delalves Costa, uma das vozes da nova poesia gaúcha

Delalves 2 Lançamento do livro Extemporâneo na Biblioteca Pública de Santo Antônio da Patrulha
Delalves Costa no lançamento de “extemporâneo” (Foto Divulgação)

Por José Pedro S.Martins

A literatura gaúcha é um exemplo histórico do vigor da escrita produzida e consumida fora do eixo Rio-São Paulo. Érico Veríssimo (1905-1975), Moacyr Scliar (1937-2011), Mário Quintana (1906-1994), Josué Guimarães (1921-1986) e Luis Fernando Veríssimo (1936) são alguns dos autores locais que ultrapassaram fronteiras, há um mercado editorial forte e eventos de massa que promovem os autores regionais e nacionais.  Neste ano a Feira do Livro de Porto Alegre chegou à sua 64ª edição, sendo uma das mais antigas em atividade no país. Já a 17ª Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo, que seria realizada entre 30 de setembro e 4 de outubro, foi adiada em função da falta de recursos. Neste cenário brilham nomes emergentes, como o de Delalves Costa (Anderson Alves), uma das vozes da nova poesia do Rio Grande do Sul. São muitas vozes, que estão brilhando com força.

Delalves lançou o seu mais recente livro, “extemporâneo”, na Feira do Livro de Gramado, que realizou a sua 23ª edição entre os dias 15 e 25 de junho. O evento acontece na entrada da rua coberta, uma das atrações turísticas da cidade, de frente para o Palácio dos Festivais, onde é realizado o Festival de Cinema de Gramado. “Por ser uma cidade turística, recebe pessoas de todas as partes do Brasil e do exterior, e fazer a feira no inverno é um convidativo”, comenta Delalves. Na cidade em que ele reside, Osório, a feira do livro local alcançará a sua 34ª edição.

Nesta entrevista a Pé de moleque, Delalves comenta um pouco a sua trajetória, a sua visão de literatura, a repercussão de seu trabalho e fala como é produzir poesia fora do eixo Rio-São Paulo.

Delalves 4 Feira do LIvro de Gramado 2019
Feira do Livro de Gramado de 2019 (Foto Divulgação)

Pé de moleque  – Fale um pouco de sua poesia, que já foi classificada próxima do hermetismo. Concorda com essa categorização?

Delalves Costa – Toda vez que me abordam para falar da minha poesia, estranhamento, fico sem saber o que dizer. De fato, não me percebo pretensioso no processo criativo; se a poesia acontece, aconteço. Escrevo porque não me basto em minhas narrativas sujas de mundo. Nesse sentido, é a poesia o ‘lugar outro’ no qual me permito não ter onde nem quando. Nos eventos, contudo, não consigo prender fuga dessa pergunta, e sempre digo alguma coisa, do tipo ‘meus versos tem como tema o homem contemporâneo, ademais é o que inquieta o leitor’. Por isso, valho-me da apreciação dos críticos.

Quem primeiro estudou com profundidade minha poesia e atribuiu-me o hermetismo foi o crítico literário Eduardo Jablonski, ao afirmar, no livro O Hermético na poesia de Delalves Costa (Class, 2018), no qual afirma ser eu “um poeta hermético, difícil”, pois, segundo ele, “cada um dos seus poemas trabalha o mistério da poesia pura e expele estilhaços de significação por todos os cantos.”. Para Alexandra Vieira de Almeida, escritora e Doutora em Literatura Comparada (UERJ), também há um “vanguardismo” na minha poesia com postura hermética, a qual “se utiliza do processo de experimentação com a linguagem, sempre renovada”. Já Krishnamurti Góes dos Anjos, escritor e crítico literário, ressalta que tenho uma poética incomum, “formada por neologismos, aglutinações de outras palavras e/ou sentidos conferidos pela homofonia e por sons que assumem sentidos próprios.”.

Se três resenhistas consideram-na próxima do hermetismo, é porque este é um aspecto relevante.  Hermética, talvez, não pelo viés filosófico (do que é inatingível), mas no que se refere a uma poesia com ampla engenharia estética, que desafia o encaixe sintático, e por isso mais difícil de ser percebida, compreendida, assimilada de início. O que a torna palpável é percurso social, escrevo a vida e o que a cerca, sem filtros. Categorizá-la é apenas uma convenção, um ritual da crítica, e respeito; a arte-desfronteiramente não cabe numa categorização, está no deslimite.

Delalves 3 Capa de Extemporâneo
Capa do novo livro de Delalves Costa

Pé de moleque – Como descreve a sua trajetória poética, de “Coisas que faltam em mim” até “O apanhador de estrelas” e “extemporâneo”?

Delalves Costa – Coisas que faltam em mim foi o primeiro livro que lancei com ajuda do artista plástico e editor Cloveci Muruci, em formato de envelope – o poestal, como carinhosamente o intitulei. Em torno de vinte poesias, em cartões, prático para serem lidas em saraus – sim, muito participei de saraus em bares, cafeterias. Na época, em 2006, quem apreciava os meus escritos dizia que os versos já apresentavam “aquele algo mais”. Confesso que publiquei muita coisa inacabada, mas nem por isso me arrependo (todo texto precisa estar e viver no/o seu tempo). Desde então, as vivências e as experiências de leitura me permitiram amadurecer intelectualmente, e aprendi que não se compõe uma poesia com vocábulos, mas o que deles se extrai.

O livro O Apanhador de Estrelas (Class, 2018) é uma coletânea de poesias pensadas para serem vivenciadas por um público em idade escolar, mas nem por isso abdiquei de refinar a linguagem. O título é uma homenagem ao meu avô materno, negro, analfabeto, exímio contador de histórias, do qual herdei a poesia, a narrativa poética.

Em extemporâneo, acredito, com a contribuição do criterioso editor Cláudio Carlos, da Editora Coralina, estão as poesias que mais receberam tratamento estético, e por isso foram selecionadas. Apesar de hoje parecer um autor mais bem acabado, estudado pela crítica especializada, ainda assim, constantemente, procuro me reinventar a fim de surpreender o leitor, o qual, a meu ver, precisar ser desafiado a pensar, a reflexionar; e a não ingerir vocabulário no raso. Enfim, uma trajetória de muitas pétalas, mas sempre absorvendo o aprendizado dos espinhos.

Pé de moleque – O que pode dizer da poesia gaúcha contemporânea? Como é fazer poesia fora do famoso eixo Rio-São Paulo? 

Delalves Costa – Embora o pioneirismo literário literatura sul-rio-grandense tenha ocorrido com a publicação de um livro de poesia, por Delfina Benigna da Cunha, poetisa e precursora da literatura gaúcha, isso em 1834, sendo o 1º livro de versos impresso no RS, foi (e continua sendo) na prosa que os se destacaram os autores gaúchos – Simões Lopes Neto, Érico Verissimo, Ciro Martins, Josué Guimarães, Moacyr Scliar, Luis Fernando Verissimo, Lia Luft, Caio Fernando Abreu, Martha Medeiros, Letícia Wierzchowski.

Na poesia, Mario Quintana, Carlos Nejar, o nosso imortal da Academia Brasileira de Letras, e Maria Carpi, para citar alguns, ganharam o Brasil com a sua poética refinada. Contemporaneamente, a poesia conta com importantes nomes, como bem elencou o crítico Jablonski. Para ele, mesmo longe dos holofotes midiáticos, jovem, e morando em uma cidade do interior e pequena, sem vida cultural badalada, figuro entre os “grandes da poesia do Sul”, como Armindo Trevisan, Joaquim Moncks, Rossyr Berny, Jaime Vaz Brasil e José Eduardo Degrazia. A poesia contemporânea gaúcha é espetacular, atingiu maturidade.

Contudo, por estarmos distantes do eixo Rio-São Paulo, os poetas gaúchos não são tão conhecidos assim no Brasil, embora muitos dos citados, além de ter extensa produção, são muito lidos no exterior. Ir regularmente a ou morar em São Paulo e Rio de Janeiro por uma temporada se tornou opção para quem busca maior reconhecimento da crítica. No ano passado, estive em duas ocasiões na Capital paulista, onde participei da Maifest e da Brooklinfest, no bairro Brooklin, bem como aproveitei para conhecer a Patuscada, Bar e Livraria do amigo Eduardo Lacerda.

Pé de moleque – O que é para você fazer poesia hoje, em tempos bárbaros, sombrios e distópicos em muitas dimensões?

Delalves Costa – Em tempos assim, de relações fluídas, como definiu Bauman, do homem contemporâneo cego diante do mundo e da beleza do viver, penso que fazer poesia hoje é insurgir em favor da manutenção da arte, da literatura, da cultura. O poeta precisa sentir o que o circunda, se permitir sofrer “a dor que deveras sente”, deixar o sangue da inspiração ainda quente escorrer pelas entrelinhas, essência passional e vital da arte, engajado e em constante excitação.  Se “a arte existe porque a vida não basta”, como bem nos desafiou Ferreira Gullar, tem o poeta o compromisso de transcender o automatismo, decolonizar o instituído, em busca do pasmo essencial. Em tempos bárbaros, sombrios e distópicos, a arte tem um papel fundamental enquanto mecanismo de luta, visto que é no caos que a inspiração humanística se agiganta em prol da humanidade. Perdeu-se o pasmo essencial, a triste rotina está se sobrepondo à beleza do viver. Por isso, independente se é poetizar, ou poemar, ou poesiar… poeme-se!

Pé de moleque – E “extemporâneo”, qual a sua mensagem, a sua estética, a sua proposta para os vorazes dias de 2019?

Delalves Costa – Publicado em maio último pela Coralina – editora nova no mercado editorial, sediada em Cachoeira do Sul –, muitos foram os eventos de lançamento: bibliotecas públicas, espaços culturais, feiras de livro, eventos de rua, escolas, universidades. Para minha surpresa, a primeira edição está em vias de se esgotar logo. Mas o que explica o sucesso de público e crítica? Na contracapa de extemporâneo, magistralmente, o crítico literário Cleber Pacheco ressalta que a minha poesia “é um desafio, suscitando inquietação, despertando a percepção, é um convite à ousadia, à sensibilidade, a romper com o sistema”. Como escrevi certa vez, “renascer das cinzas não basta, / é preciso remodelar as chamas”. Extemporâneo é um livro curto, mas devorá-lo aos poucos, em doses homeopáticas, é aproveitar todas as possibilidades de leitura.

Alexandra Vieira, em sua resenha sobre a obra, publicada no Brasil e em Portugal, escreveu que “a ambiguidade de sua construção imagética que leva ao entrecruzamento de versos, palavras e linguagens numa dose dupla a formar vários sentidos para o texto, formando assim um mosaico de várias pinturas que funcionam como imagens nascentes e múltiplas. Sua visão é pluriestilística, construindo várias palavras a partir de uma mesma palavra e ressignificando versos.”. Em extemporâneo, leitor, para além da estética, encontrarás poesias retratando, sobretudo, o homem contemporâneo.

Um comentário

  1. Boa noite, senhor José Pedro, boa noite, senhores leitores!
    Parabéns pela maravilhosa entrevista com o poeta e professor (aqui a ordem não importa) Anderson Alves, autor do Extemporâneo
    (Editora Coralina, 2019), que tive a oportunidade de ler e me encantar.

    Não li os seus primeiros livros de poesia, mas o Extemporâneo me apresentou um jovem poeta, jovem porém maduro, firme e consciente da sua escrita, escultor de versos instigantes e desassossegadores, adjetivos que procuro e bem pouco encontro na maioria dos poetas contemporâneos. Já afirmei e reafirmo aqui: a poesia do Delalves me surpreendeu muito positivamente. Eu que
    tive a chance de dar um abraço no poeta em São Paulo, garanto que o Anderson ainda “está escondendo o seu jogo”, ou melhor, a sua poesia, e muito breve ele outra vez, a partir lá das verdejantes pradarias da pequenina gaúcha Osório, voltará a nos surpreender, desta vez de goleada. Eu, mineirinho de Nova Era, de pernas tortas e cambaleantes neste jogo da poesia, também arrisco alguns versinhos aqui e ali, e algumas vezes até me dizem que “bati na trave”. Mas só. Nem um tento, sequer um golzinho de bola espirrada consigo. Acontece que o campo da poesia não é pra qualquer um e para os craques deste jogo não há substitutos. Cada jogador é único. Jogar com as palavras de forma a dar-lhes sentimento, emoção e vida é para uns pouquíssimos que recebem uma divina luz. Para verdadeiros craques.
    Não aqueles acostumados a só bater pênaltes, mas os que partem de um ponto previamente definido e constroem um itinerário, caminho perfeito dentro do campo até chegar ao gol. Na poesia nada é por acaso, tudo se concretiza com maturidade e respeito àquele que está na arquibancada: o leitor.
    Maturidade e respeito que o Anderson Alves já mostrou de imediato e de sobra com o Extemporâneo.
    E como a poesia é alimento para a alma, arrisco aqui um paralelo entre poesia e religião:
    o poeta consegue fazer com as palavras, e sem a necessidade de juramento, o que os padres gostariam de fazer com as pessoas: um casamento perfeito, união que nem a morte separa.

    Eis abaixo uma das suas grandes jogadas, poema do seu livro em questão:

    “Poema acordado em três atos”

    I

    Olhe-se nos meus olhos, veja meus luares
    que plantei no coração.
    Se você é a direção, visite meus lugares.

    II

    Minha língua sem pudor, o céu de fases!
    E assim, lhe deixo rouca (e toda nua)
    Toda louca em nossas íntimas bases.

    III

    Se bocejar, me beije. Seu sono inteiro
    hei de guardá-lo no céu da boca…
    E ser para seus lábios poema acordado
    com lugares (lua, luar) na língua
    que até a noite, aliás, desconhece.


    Remisson Aniceto (Nova Era-MG)

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